


Financiamento: República Portuguesa - Cultura / Direção Geral das Artes, Câmara Municipal de Lisboa.
design: @manyislands
"Um festival é uma celebração, um parênteses do quotidiano, uma inflexão do banal, qualquer metáfora serve para reforçar a excepcionalidade deste evento e justificar uma intensidade que dá sempre azo a excessos, sobras e pontas soltas. Nesta festa que celebra a dança, que é o Cumplicidades, esse excesso revela-se na multiplicidade de contextos e formatos de apresentação que ampliam as possibilidades de encontro entre público e artistas e convocam-nos para outras formas de estar e sentir. Por isso, ao longo de três semanas, o Cumplicidades de 2025 traz consigo espectáculos, laboratórios de criação, aulas, audioguias, performances no espaço público, na floresta, no jardim, na galeria, performances participativas e conversas. Contextos que cruzam pessoas de diferentes áreas e incluem tanto aquelas que nunca viram dança como as que a conhecem intimamente. Formatos que dão a ver as diferentes gradações da criação artística em Dança, onde o espectáculo é apenas uma das suas diferentes manifestações. Gradações poderia, aliás, ser o subtítulo desta Edição.
A afirmação desta gradação dá-se logo na abertura do Festival com a apresentação de sete performances (umas curtas outras duracionais), resultado de um laboratório de pesquisa mediado por Alex Cassal que reúne 7 artistas: Bibi Dória, Bruno Senune, Daniel Matos, Elizabete Francisca, Leonor Mendes, Luís Guerra, Magnum Soares; e 5 neurocientistas: Beatriz Belbut, Caroline Haimerl, Jaime Arlandis, Jorge Ramirez, Tatiana Silva; numa colaboração inédita entre o Cumplicidades, o Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT) e a Fundação Champalimaud e que tem como ponto focal as obras de Ana Léon, Jeff Wall e Rui Moreira, em exposição no MAAT.
O diálogo do Festival com as artes plásticas, continua em mais duas performances, uma de Inês Campos e Grilo, em relação com uma peça de Fernanda Fragateiro patente no Centro Cultural de Belém (CCB), e outra de Andresa Soares que decorre no Pavilhão Branco (Galerias Municipais de Lisboa) em confronto com uma exposição de Francisco Vidal.
Apelando ao laço primordial entre dança e música, reunimos quatro Duplas de performer e instrumentista para conceberem e apresentarem uma série de “improvisações planeadas”. Um formato que dá a ver diferentes possibilidades de relação entre o movimento e a música, convocando uma diversidade de estilos que vai desde a música barroca à música experimental. Francisco Rolo e Helena Raposo (Teorba); Francisca Pinto e Yaw Tembe (Trompete); Tarli Lumby e Francisco Cipriano (Percussão); Marta Cerqueira e Ricardo Jacinto (Violoncelo) são as Duplas que compõem este programa que podemos assistir num final de tarde no Jardim da Estrela.
Ainda no espaço natural, embrenhado no meio dos troncos das árvores e plantas do Centro de Interpretação de Monsanto, encontraremos Pedro Ramos, coreógrafo (ou será que poderemos dizer performer-xamã?) que estreia Corpo Totémico. Uma peça que traz a este festival uma importante e urgente reflexão sobre a nossa relação com a terra.
De volta à cidade, Ezequiel Santos, investigador e curador, propõe-nos Percursos 2.0, um audioguia que conduz o público por vários locais emblemáticos de Lisboa onde a dança fez e/ou continua a fazer história. Uma visita guiada, originalmente concebida para a 1ª edição do Cumplicidades em 2015, e que agora é atualizada e adaptada a um novo formato, acessível a qualquer pessoa, em qualquer momento.
Nas nossas deambulações pela cidade, certamente que não nos são indiferentes os inúmeros cartazes de eventos culturais afixados nos muros e tapumes. Pedro Nuñez, colador de cartazes há mais de 20 anos mas com um percurso intimamente ligado às artes cénicas, dá-nos a ver, em Agulha, a performatividade desse gesto “invisível”, à medida que partilha fragmentos da sua história da dança. Uma performance que acontece num dos muros da praça central do CCB.
Num outro espaço não convencional do CCB, poderemos encontrar a performance Mandíbula das coreógrafas Josefa Pereira e Patrícia Bergantin. Um dueto visual e fisicamente intenso onde a boca, enquanto dispositivo mecânico e sensível, inspira o movimento dos corpos e a própria cenografia.
Mas nem só de outros formatos e contextos se faz esta edição do Festival Cumplicidades. Também poderemos assistir a espectáculos em espaços convencionais que fazem uso do aparato teatral e cujo hibridismo e risco estão tanto nos temas que convocam, como na presença dos corpos. A estreia absoluta de Cat-Gut Jim de Connor Scott na Black Box do CCB e a estreia nacional de Melodrama Senza T de Bruno Brandolino no Teatro do Bairro Alto (TBA) são dois espectáculos que, pelo percurso singular de Scott e Brandolino, nos fazem antever uma força mobilizadora capaz de soprar a espuma dos dias e deixar a nu uma crueza e fragilidade que nos perturba e desarma.
Cabem ainda nesta edição três propostas decorrentes das parcerias que a Eira tem vindo a implementar na zona do mediterrâneo. Em “Fuck Me Blind” seremos envolvidos por um hipnótico ritual de sedução que coloca o coreógrafo da Sardenha Matteo Sedda frente a Marco Labellarte (Black Box, CCB); Park Keito, a dupla proveniente de Barcelona, evoca os poemas de Takahide Nishiwaki em “Rokatei”, numa atmosfera mágica e híbrida, em que o corpo e a voz de Kotomi Nishiwaki dialogam com a música ao vivo de Miquel Casaponsa (Gaivotas 6); Sabela Mendonza chega da Galiza com “dobrez”, uma proposta a solo onde a cada dobra de papel se desdobram diferentes possibilidades de leitura (Biblioteca de Marvila). Com as Jornadas 45+ (Teatro Taborda) testemunharemos o culminar de um processo de reflexão e pesquisa, iniciado em 2023, segundo um modelo de encontro entre pares que responde à necessidade de plataformas dirigidas a profissionais com mais de 45 anos.
O Festival termina com um evento de imaginação de futuros no Centro Champalimaud - Ideias para o Futuro. O auditório da Fundação Champalimaud, lugar de comunicação do que se faz de mais inovador nas diferentes áreas de investigação científica e da medicina, será palco para artistas e cientistas partilharem com o público os seus projectos para o futuro, numa sequência de palestras/performances ancoradas na realidade ou de mãos dadas com a ficção. Um evento singular onde se revelam as afinidades da arte e da ciência na sua curiosidade pelo desconhecido. Ana Borralho e João Galante, Piny, Sónia Baptista, Tiago Cadete, Ana Maia, John Krakauer, Memming Park, Rita Fior, Tiago Marques.
Quanto às pontas soltas deste festival, há pelo menos três a destacar. Para quem quiser pensar em conjunto, estão programadas no MAAT, CCB e TBA conversas entre curadores, público, artistas e convidades (nas quais não conseguiremos conter alguns desvios performativos). Para quem quiser experimentar, propomos, no CCB, quatro sessões de movimento abertas a qualquer pessoa, sendo que duas delas são especialmente dirigidas às crianças (com Pedro Ramos, Lewis Seivwright, Carla Ribeiro). Para estudantes e profissionais das artes performativas, temos o grupo de reflexão do Cumplicidades - Caleidoscópio - que conta com a mediação de David Marques e que se apoia nas diferentes propostas do Festival para uma divagação colectiva sobre modos de fazer/pensar na criação artística.
Há nos editoriais de festivais uma intenção mobilizadora, um “venham ver algo que nunca viram antes”. Ao mesmo tempo que se destaca a singularidade de cada proposta, ensaiam-se conceitos ou narrativas agregadoras, mas sobre as quais temos muitas reservas pelo risco de redução de leitura das propostas. Por isso, delegamos essa função editorial na performance/instalação Mapa Impermanente. Um mapa visual, concebido por Lucas Damiani em colaboração com Luísa Capalbo, que tenta revelar as afinidades formais e conceptuais entre todas as propostas do Festival. Uma tarefa hercúlea a que podem assistir e participar no MAAT, CCB e TBA. Em cada uma das apresentações, Damiani reformula esse mapa em colaboração com o público, num exercício editorial ou de dramaturgia colectiva, revelador das inúmeras possibilidades de leitura do Festival.
É verdade que uma das forças mobilizadoras deste festival reside na singularidade das propostas e dos seus contextos de apresentação, mas também é possível que ela decorra de algo que lhe é alheio: a radicalidade com que o mundo mudou nos últimos tempos. Talvez precisemos hoje, mais do que nunca, de experiências de comunidade em torno de propostas que nos mostram que há mais mundo para além da ignomínia daqueles presidentes, do sofrimento daquelas guerras, da falta de escrúpulos daqueles deputados, do ressentimento, do ódio, da hipocrisia, do medo, das equivalências com tempos de (ainda maior) destruição e morte. O que as propostas deste Festival nos mostram é que há um mundo que não nos grita aos ouvidos, um mundo sensível, pleno de nuances e ambiguidades, um mundo no feminino, um mundo de identidades múltiplas e de inúmeras letras, um mundo feito de interdependências visíveis e invisíveis entre todos os seres vivos e sistemas, um mundo que se recusa a ser manietado, que resiste existindo e pelo qual devemos continuar a indignar-nos e a celebrar a sua existência."
S&V